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quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

Outro número, outro número, outro número.

Eu não sou o 35, o 5085774932, o 99419319091, o 113673, o b3433 ou o c106580. Em algum momento da vida, esses números me representam, na chamada, no rg, no cpf, no número de matrícula, mas ninguém quer ser só um número, só mais um, só um igual.

Embora eu acredite que a igualdade seja um princípio muito importante, a sensação de ser tratado como um a mais, essa sensação de despersonalização é amarga. Com o tempo e o amadurecimento, já me acostumei a esse gosto amargo e, como aconteceu com o chimarrão, não só me acostumei como acabei gostando. Hoje gosto de ser discreta, não criar polêmicas e não atrair a atenção para mim, mas foi um processo doloroso de construção de alguém dentro de mim confiante o suficiente para gostar de ser ninguém.

Escrevi há muito tempo um post sobre as diferenças entre a Seleste e a Preta e ele é até hoje muito significativo para mim. A Preta era uma pessoa e a Seleste é uma cidadã. A Preta era do âmbito familiar, a segurança pura, a convicção de ser especial. A Seleste é do âmbito do universo, cônscia de seus deveres e resignada na sua insignificância.

http://apropositodeportoalegre.blogspot.com.br/search?q=preta+e+seleste

Sei também que a cidadania, naqueles termos de Sérgio Buarque, é a despersonalização, a consciência da igualdade das instituições frente às pessoas. Tudo bem. Já escolhi meu lado. Prefiro ser tratada como igual para que todos assim sejam, a fim de que nem eu nem ninguém sinta-se ludibriado.

Mas com a minha filha é diferente, não consigo tolerar essa despersonalização do serzinho mais especial de toda minha vida, minha pérola de afeto e carinho. Ela representa hoje toda razão da minha vida, tudo que eu tenho eu trocaria por ela sem titubear.

Acontece que, depois de quase dois anos sob os cuidados amorosos dos bisavós, tive de deixá-la aos cuidados de uma escolinha. Embora eu tenha visitado muitas e optado por essa por sentir-me segura, é uma escolinha e não espero que minha filha tenha nenhum tratamento especial. Mas ela espera, quer e exige. Olhando assim o leitor pode pensar que ela é só uma criança mimada e isso só mais uma fase do seu crescimento. Eu até concordo, mas acho que há mais do que isso em suas queixas e revoltas.

Ela quer ser tratada como uma pessoa. Uma pessoa come quando tem fome, brinca quando tem vontade, fala quando tem o que dizer, uma pessoa tem posições, não concorda com tudo e deseja ser respeitada, uma pessoa não é mais um na fila.

Eu não vejo como a escola poderia comportar pessoas. As pessoas vivem em suas famílias e minha filha sofre por ter sido tirada de lá. De não passar o dia como o amor do vovô, a lindeza dos dindos, a queridinha da bisa e o centro da vida da vó. Tudo isso é muita coisa para se deixar sem protestar.

É claro que ela não entende nada, mas contesta. Diz todo dia que não quer ir para escola. Na escola, só quer ficar sob os cuidados de uma professora e quer toda sua atenção para ela, quer ser especial, respeitada em seus desejos e seus momentos. E não sei se ela está errada. E não sei se estamos certos. Sei que, por hora, estamos sofrendo.

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